segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Para alem dos homens



Além dos homens

Os baobás, famosos por habitar um asteróide em O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry, representam hoje a resistência negra expressa nas comunidades quilombolas do Brasil

Josiane Giacomini
Junho de 2006. Um pé de baobá (Adansonia digitata) é plantado no quilombo urbano Casa de Cultura Tainã, na Vila Padre Manoel da Nóbrega, em Campinas, interior de São Paulo. A muda, antes de ganhar o chão, ficara num vaso por alguns anos, como se esperasse maturar um sentido para si mesma. A resposta foi encontrada por Antonio Carlos Santos Silva, o TC. Coordenador do espaço, ele resolveu fazer desta árvore, que tem origem na África Tropical, um símbolo de unidade das comunidades quilombolas do Brasil, que hoje integram a Rede Mocambos (www.mocambos.net). Agora, diante do pé que cresce a passos largos na Tainã, reconhece: “Ele já é um pequeno Deus no meu quintal.”  
Com um saquinho cor de ouro nas mãos, repleto de “pedrinhas” de árvore (que vieram de Moçambique), TC é uma espécie de fiel depositário de um sonho: o de criar a Rota dos Baobás. Mais que formar uma linha geográfica por meio desta espécie exótica, quer que as sementes, que um dia serão braços voltados ao céu, representem também a identidade de seu povo.  
No final do ano passado, durante o 2º Encontro Nacional da Rede Mocambos, TC fez chegar a 80 comunidades, distribuídas em 12 estados brasileiros, as primeiras promessas desta intenção. “As pessoas que estivessem afinadas com a proposta fariam germinar essa ideia por aí”. Queria dividir a responsabilidade. E, de algum modo, os baobás seriam o elo entre eles.  
O “ritual da semente” era simples, lembra TC: ao experimentar a fruta, cada pessoa carregaria um baobá dentro de si e ajudaria a fertilizar outro. Hoje já existem mudas plantadas em Itatiba, São Luis do Paraitinga, Ubatuba e Sorocaba (todas em São Paulo) e também em Itacaré (BA) e Olinda (PE). Outras aguardam a germinação das sementes, caso de comunidades localizadas no Espírito Santo, Pará, Rondônia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. “Para conhecermos o futuro, temos que saber nosso lugar no passado”, afirma.  
Por possuir um tronco muito espesso na base, os baobás têm um desenho bastante diferente de outras árvores: costumam se estreitar no ápice, formando uma espécie de cone na paisagem. Nele, evidenciam-se grandes protuberâncias. As folhas dão o ar da graça em data específica do ano: entre julho e janeiro. A floração ocorre durante uma única noite, sempre entre maio e agosto. É uma raridade. Quando se pensa que só com a flor aberta é possível fazer a sua polinização, entende-se ainda mais a sua preciosidade. Em geral essa dispersão é feita por morcegos.  
Em 1749, quando o pesquisador francês Michel Adanson voltava de uma viagem ao Senegal, elaborou desenhos e descreveu a tal árvore incomum: “Chamou-me a atenção uma árvore cujo tamanho era incrível. Era uma árvore que tinha frutos com formatos de abóboras, de nome “pão de macaco”, no qual os Wolots diziam “goui” no idioma deles. Provavelmente, a árvore mais útil em toda a África. A árvore universal para os nativos.”  
A partir disso, os pesquisadores Bernard de Jussieu e Charles de Linné creditaram a Michel Adanson o nome científico do baobá, chamando-o Adansona digitata. Há, além desta, outras sete espécies de baobás:Adansonia grandidieriAdansonia gregorii (ouAdansonia gibbosa); Adansonia madagascariensisAdansonia perrieri; Adansonia rubrostipa (ou Adansonia fony);Adansonia suarezensis; e Adansonia za.  
Muitas são as histórias que envolvem os baobás. Talvez uma das mais bonitas seja a da linhagem africana Xambá, que atualmente mantém-se em Olinda (PE) como o único reduto que ainda sobrevive intacto em terras brasileiras. Neste mês, faz 80 anos que seus membros migraram de Alagoas para Pernambuco por causa das perseguições sofridas no século passado. A Comunidade Xambá do Portão do Gelo, um quilombo urbano, consegue manter vivas suas tradições e cultura.  
Cleyton José da Silva, conhecido na comunidade como Guitinho da Xambá, explica que, desde sempre, seu povo tem uma crença religiosa: a de que quando alguém morre, vai habitar o interior de um baobá. “Traz essa carga espiritual que a árvore emana e exterioriza”, explica. No Brasil, em função da ocorrência desta árvore em poucos lugares, outros povos africanos, sobretudo no Nordeste do País, têm a gameleira (Ficus insipida) como similar para tal rito.  
Como veio a Campinas participar do encontro da Rede Mocambos, Guitinho da Xambá lembra que levou de volta na bagagem quatro sementes de baobá que custavam a nascer. “Fiquei no aguardo de elas vingarem”. E nada acontecia. Um dia, acordou cedo como de costume para aguar as plantas e eis que uma muda brota. “Fiquei muito feliz.” Só não contava que, no mesmo dia, um membro da comunidade, Zezinho Bombeiro, morreria. Não por acaso, “foi embora para morar num baobá”, diz, com toda a carga simbólica que o acontecimento acabou por ganhar.  
Curiosamente, nos dias subsequentes, todos os baobás vingaram. E pensou: “Nossos ancestrais vão habitar essas árvores. Por isso que quando alguém de uma família morre, planta-se uma árvore”.  
Por enquanto, ainda não foram definidos os lugares onde os quatro exemplares da Comunidade Xambá serão plantados. “As mudas ainda estão em potes. Estamos pensando em plantá-las em pontos estratégicos que delimitam o nosso território, para servirem de referência para a Rota dos Baobás”. Mas Guitinho sabe: “Enquanto um baobá estiver de pé, o nosso povo, a nossa história não será roubada nem destruída, pois o baobá, em sua essência, transpassa o tempo além dos homens.”
Os baobás por dentro
A árvore tem origem na África Tropical, ora nas estepes africanas, ora em regiões semiáridas do continente. Além do tamanho incontestável e tronco espesso (chega a atingir nove metros de diâmetro e exige muitos braços para abraçá-la), diz-se que é um exemplar que guarda lugar para todos os usos.  
Para começar, o pó, obtido a partir das folhas secas e trituradas, combate anemia, raquitismo, diarréia, reumatismo e asma. Como é rico em cálcio, ferro, proteínas e lipídios, serve também como alimento. Basta acrescentar água ao pó para obter uma bebida semelhante ao leite de coco. As raízes das mudas de baobás, cozidas, também ficam semelhantes ao aspargo.  
Pensa que acabou? Seus frutos têm alto teor de vitamina C e servem para combater a febre, a malária, o sarampo e a catapora, além de inflamações no tubo digestivo. Têm sabor semelhante ao de um tamarindo (menos azedo), com a consistência de um jatobá. Já as sementes, ricas em óleo vegetal, podem ser assadas e consumidas. São do tamanho de avelãs.  
Como chega a atingir 30 metros de altura, há especialistas em cavar a árvore por dentro (sem destruí-la, obviamente) e transformar o seu tronco em cisternas comunitárias em plena aridez africana. Um baobá pode armazenar até 120 mil litros de água. Tanto que é chamado de “árvore-garrafa”.  
Ninguém vai destruir uma árvore imponente e sagrada como essa, mas a sua madeira também serve à construção civil e à carpintaria. De seus troncos é possível extrair música em instrumentos musicais, além de cordas e linhas (retiradas a partir de seu cerne). Até as conchas dos frutos podem virar utensílio doméstico, uma espécie de cuia.
Senhor das árvores
O olhar, verde como os campos que costuma percorrer, guarda sua paixão-primeira: árvores de toda espécie. Mas para Francisco de Assis Leitão de Moraes, técnico de apoio do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), onde está desde 1977, os baobás são mais: têm uma aura de coisa sagrada, daquelas que só com muita reverência consegue-se encarar de igual para igual. Também, não é para menos. O que dizer diante de um exemplar que pode viver até seis mil de anos? O ser humano, com sua longevidade média de oitenta, fica muito pequeno diante de tamanha grandiosidade.
Francisco de Moraes explica que foi uma dificuldade, há mais ou menos 20 anos, conseguir uma semente de qualidade e fazê-la virar um baobá. Diferentemente do que a maioria pensa, explica que as árvores são como recém-nascidos. “Precisam de carinho para se desenvolver.” Foi por esta razão, inclusive, que doou a muda que hoje cresce no solo da Tainã. A “mãe” deste exemplar está plantada na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na Praça Milton Santos, e um outro “filho” dela cresce na sede do Coral Pio XI, no Jardim das Paineiras, também em Campinas, sob seus exclusivos cuidados.
“Não tinha noção de que era possível cultivar aqui.” Isso porque, nas primeiras tentativas de reprodução da espécie, aparentemente as sementes que recebera eram muito velhas. Hoje sabe que “quanto mais semelhante ao ambiente natural dela, maior é o desenvolvimento”.
Discípulo de Hermes Moreira de Sousa, conhecido como o “construtor de florestas” do IAC, Moraes conta que aprendeu com ele muito mais do que qualquer universidade ensinaria. Veio dele a ideia de criar coleções com árvores “que pudessem ajudar as pessoas a acordar, quando estivessem passando por uma praça”, lembra.
Certa vez, foi até Mato Grosso só para conhecer a árvore sucupira (Bowdichia virgilioides), também conhecida por sucupira-do-cerrado. “Era uma bola azul na minha frente. Ela estava totalmente coberta de flor. Sabe quando você vê que é Deus? Aquilo faz você ver Deus.” Na opinião de Moraes, o baobá se encaixa exatamente nesta mesma medida. “É um monumento.”

Na literatura
O Pequeno PríncipeAntoine de Saint-Exupéry
Editora Agir (http://www.opequenoprincipe.com.br/home.asp)
Escrito e ilustrado pelo autor, Antoine de Saint-Exupéry, o livro O Pequeno Príncipe (1944), embora não seja sobre baobás, colocou a árvore em evidência ao apresentá-la gigantesca (como de fato é), tomando conta de um asteróide com apenas três exemplares da espécie. O narrador, em certo momento, é acordado pelo Pequeno Príncipe do título e passa a relatar as fantasias desta criança, que como tal – ou como qualquer outra – questiona sobre coisas simples, quase sempre esquecidas pelos adultos. Em suas andanças pela Galáxia, conhece vários tipos inusitados, desde um homem de negócios que não tinha tempo para sonhar até o geógrafo que desconhecia a geografia. É quando, em determinado momento, o personagem principal começa a se preocupar com o crescimento excessivo da árvore e sobre o fato de ela “roubar-lhe” o espaço.
A semente que veio da África
Heloisa Pires Lima, Georges Gneka e Mário Lemos
Editora Salamandra (www.salamandra.com.br)
Neste livro, os autores apresentam o baobá por meio de lendas, mitos, relatos, informações científicas e outros recursos, e até pela história pessoal de dois de seus autores (Georges Gneka, nativo da Costa do Marfim, e Mário Lemos, de Moçambique). A árvore, chamada também de embondeiro, tem referências maravilhosas, como a seguinte citação: “A sabedoria é como o tronco de um embondeiro. Uma pessoa sozinha não consegue abraçá-lo.” Outro ponto alto são as lendas. Gneka reconta a de “A árvore de cabeça para baixo”. Nela, um insatisfeito baobá desgosta de sua aparência. Por isso, começa uma ladainha para seus próprios galhos, dizendo que queria que fossem mais floridos ou com mais folhas etc. Diante de tantas lamúrias, o criador de todas as coisas fica tão injuriado que acaba por arrancá-lo do chão e replantá-lo de novo, só que de cabeça para baixo. Essa acaba por ser a explicação para o seu formato, já que a árvore parece trazer as raízes no lugar da copa.

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